quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Uma, duas, três

É uma noite de quinta-feira, mas poderia ter sido uma sexta, sábado, quarta ou mesmo segunda.

Ela está cansada, muito cansada, após uma semana quase toda de noites mal dormidas. O dia de trabalho foi puxado, a aula do curso de idiomas pareceu que jamais teria fim, e o dia seguinte será igualmente cheio. 

Porém, ela está feliz. Sentada à sua frente, numa mesa qualquer de um bar qualquer, está aquela amiga que conhece desde os três anos de idade, a amiga que a vida levou por outros caminhos aos dezessete e trouxe de volta dez anos depois, numa certa manhã em um certo aeroporto com voos atrasados. A amiga que agora está longe, mas que, vez ou outra, vem para a sua nova cidade em razão de algum compromisso profissional e faz da vinda um belo pretexto para se reencontrarem.

O papo rola solto, as risadas também. Já passa de meia-noite e as amigas não querem saber de ir embora (e nem de consumir mais nada, para o visível desespero dos garçons). Quase três décadas de memórias e histórias se desenrolam alegremente, enchendo ainda mais de cor e luz o já colorido salão.

Lá pelas tantas, ela se lembra de uma paixão adolescente não correspondida, um amor malsucedido que fez seu coração juvenil sofrer como se o mundo fosse acabar à época. A amiga não se recorda de quem era. Ela, rindo, descreve fisicamente o outrora amado, e aproveita para dizer que, graças à rede social da moda, descobriu que está muito melhor sem ele. Os anos se passaram, mas o rapaz de trinta continua a se comportar como se ainda tivesse quinze. E o pior: está casado com a namorada de então, que hoje está feia e gorducha. Tudo isso, claro, devidamente documentado em dezenas de fotos postadas pelo cidadão.

A amiga ri e pede para ver as fotos. Ela, já xingando de antemão a conexão proporcionada por sua operadora telefônica, saca da bolsa o celular e põe-se a vasculhar a tal rede social atrás das famigeradas fotos. O sinal está fraco, fraco....falha no carregamento da página.

Ela tenta de novo, rindo e esbravejando. Outra falha, mais um palavrão, nova tentativa. Uma foto finalmente aparece, mas está muito pequena; a amiga não consegue ver direito. Ela tenta aumentar o tamanho da exibição, mas a imagem congela. Ela pressiona a tela repetidamente com o dedo, mais uma vez, mais uma vez....

Um arrepio gélido toma conta de seu corpo. Parece que um iceberg está se revirando no seu estômago. Puta que pariu,  O QUE FOI QUE VOCÊ FEZ???

Ela não consegue ter certeza, mas tem a nítida impressão de que acaba de "curtir" a foto ao tentar aumentá-la. Puta que pariu, puta que pariu, isso não pode estar acontecendo! Isso não poderia ter acontecido! Puta que pariu e todos os outros palavrões do mundo, e agora???

A foto foi postada há pelo menos dois anos. Datam da época apenas duas "curtidas": uma da mãe do rapaz e outra da esposa-hobbit marcada na foto. Dois anos atrás, duas "curtidas". E AGORA VOCÊ APARECE DO NADA E CURTE SEM QUERER, SUA MONGA DESASTRADA???

Como explicar, como justificar? Não tem como. Na foto, apenas o casal abraçado, sorrindo feliz em meio a uma viagem. Que razões alguém que não estivesse na foto teria para curti-la?

Nenhuma. Ainda mais dois anos depois. Ainda mais que a autora da curtida foi notória e perdidamente apaixonada pelo moçoilo na adolescência e, sem medo nem pudor, escancarou seu amor em uma carta que jamais deveria ter sido escrita ou enviada (e muito menos lida).

Não tem como explicar nem justificar a "curtida" aleatória, a não ser por meio da verdade nua e crua: ela estava bisbilhotando as fotos dele, ela ainda se lembra dele, ela se incomoda (um pouco que seja) por ter sido rejeitada e por saber que hoje ele está casado com outra. Resumindo, ela estava fazendo o que não devia. Igualzinho ao famoso batom na cueca.

 Pior ainda: como remediar o deslize? Impossível. Ainda que ela desfaça a operação, a cagada já está feita. Ele provavelmente já viu a curtida, dada a velocidade das omnipresentes notificações virtuais de hoje. A esposa possivelmente já está ciente também. A essa altura, curtir e depois "descurtir" só vai dar ainda mais bandeira. 

Nesse meio tempo, a amiga continua tagarelando alegremente, sem sequer imaginar o turbilhão de emoções que assola aquela pobre alma (o que a amiga não tem de estatura, lhe sobra em disposição para conversar). Ela sua frio. O que fazer, o que fazer?

Nada. 

Não há nada a ser feito, a não ser fingir que isso nunca aconteceu. Infelizmente.

Ela pousa o celular na mesa e arrisca um sorriso sem graça, não sem antes maldizer mais uma vez a operadora. A amiga parece sentir-se encorajada e desata a falar novamente. Ela suspira em silêncio, amaldiçoando mentalmente a curiosidade humana, os amores mal resolvidos, as redes sociais, o namorado que insistiu para que ela adquirisse um celular com acesso à internet, sua ignorância tecnológica, os hobbits, todas as pessoas do mundo, o universo conhecido, tudo.

Finalmente vencidas pelas insistentes indiretas do garçom, as amigas decidem pedir a conta e ir embora. No caminho de volta até a porta do hotel, as despedidas, os elogios mútuos, os muitos beijos e abraços ajudam a reanimar um pouco sua alma. Seja como for, aquele foi um encontro feliz!

Já em casa, ela tira a maquiagem e os sapatos, veste o pijama e deita a cabeça no travesseiro. Subitamente, percebe que não vai conseguir dormir com aquela dúvida. Afinal de contas, curtiu ou não curtiu?

Curtiu ou não curtiu??

O mais sorrateiramente possível, ela se esgueira para fora da cama e mergulha a mão na bolsa atrás do celular. Nova lentidão, novo erro de conexão, nova espera e angústia sem fim...


https://mail.google.com/mail/u/0/images/cleardot.gif

Alarme falso. A foto permanece com as mesmas duas “curtidas” originais.

Exausta, ela se deixa cair na cama e dorme o sono dos justos até a manhã seguinte. 


quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Deus lhe pague

Sabe aqueles dias em que tudo parece dar errado? Aqueles benditos dias em que dá vontade de voltar no tempo e começar tudo de novo, pra ver se as coisas saem mais certo? Ah, se pudéssemos reiniciar nossos dias, tal qual fazemos com nossos computadores! Seria um recurso tão útil...

Era um desses dias. Eu parecia ter levantado com o pé esquerdo, ou melhor, com uns dez pés esquerdos. Estava com uma vontade medonha de sair correndo do trabalho e voltar para casa, me enfiar na cama e não sair dali até maio do ano que vem, pelo menos.

Para piorar, era um dia cinzento, com uma garoazinha chata daquelas de arrepiar o cabelo e um vento besta que insistia em me descabelar mais ainda. Meu humor, definitivamente, estava tão cinzento quanto o céu daquele dia.

E não, eu não podia sair correndo pra casa. Já havia chegado beeem atrasada no trabalho e levado aquela significativa olhada de soslaio do chefe. E, sinceramente, me enterrar debaixo das cobertas até maio do ano que vem parecia admitir a derrota. Não tinha como, não mesmo, infelizmente.

Deu o horário do almoço e eu saí novamente à rua, esbravejando mentalmente contra o cinza do céu, a garoa besta, o vento chato, o animal motorizado que fez uma barbeiragem absurda bem na minha frente (eu estava a pé, mas motoristas navalhas conseguem me irritar profundamente mesmo quando não estou ao volante, acredite!), a vida, o mundo, o universo, enfim, tudo. Tudo.

 Mau humor era apelido para o meu humor.

De repente (não mais que de repente), a vozinha da consciência, meu personal Grilo Falante do Pinóquio, se fez ouvir na minha cabeça contrariada: “Ah, vá, todo mundo tem dias assim, até parece que você é a única no mundo! E, com certeza, outros dias como esse virão, bem desse mesmo jeito! Relaxe, não aconteceu nada de tão grave assim, nada que não tenha solução! E, afinal de contas, você vai passar o dia emburrada feito uma criança mimada ou vai encarar os problemas como um adulto deve fazer – senão com alegria, ao menos com serenidade?”

Bendito Grilo Falante! Bastou ouvir essas palavras, ditas de mim para mim mesma, que já relaxei os ombros, desfiz a cara feia, respirei fundo e pensei: “É mesmo...melhor encarar as coisas com serenidade e parar de ficar remoendo tudo o que deu errado! Quem sabe o meu dia não melhora agora à tarde?”
Mal havia concluído esse pensamento quando uma coisa extraordinária aconteceu.

(Em verdade, a coisa, em si, não teve nada de extraordinário. Extraordinário foi o que eu fiz dela e como isso mudou meu humor e meu dia totalmente).

Caminhando em minha direção, vinha uma senhora de seus setenta, quiçá oitenta anos, carregando um cartão de visitas na mão e com um sorriso desconcertado. Numa voz muito suave, ela me disse:

- Meu bem, por favor, eu gostaria de uma ajuda sua aqui. Eu estou procurando esse endereço, mas estou tão perdida! Cheguei segunda-feira aqui na cidade e ainda não consegui me localizar direito...essa cidade é muito estranha, eu não consigo me achar aqui!

Reconheci-a imediatamente. Eu havia passado por ela no meu trajeto super-mega-atrasado para o trabalho, mais cedo naquele dia. Deus do céu! Essa senhora estava perambulando pela rua atrás do tal endereço desde aquela hora? Coitadinha!

Examinei o cartão que ela me entregava. Era um salão de beleza que, ao que tudo indicava, ficava na quadra seguinte. Disse isso a ela, mas ela balançou a cabeça negativamente, afirmando que já havia passado por ali e não poderia ser naquele endereço.

-  Eu me lembro de que era um prédio alto, branco, e que, ao descer por aquela rua, eu chegava na Avenida X, que leva para a minha casa.

Carácoles! Prédio alto e branco, avenida que leva para casa? Não fazia a mínima ideia de onde o tal lugar poderia ser, mas não tinha coragem de indicar uma direção aleatória para aquela senhorinha tão amável e deixá-la vagando pela rua por sei lá mais quanto tempo, por mais que minha barriga estivesse roncando quase audivelmente de fome.

- Eu tive uma ideia...como é o nome da senhora?

- Ermelinda, meu bem.

- Então, Dona Ermelinda, eu tive uma ideia. Vamos ligar para esse número aqui do cartão? -  e remexi na minha bolsa atrás do celular.

- Não, pode deixar, usa meu celular aqui, bem! Só vou te pedir para ligar porque eu ainda não aprendi a mexer nesse negócio aí !

Ela riu, eu ri também. Eu arrisquei uma brincadeira, dizendo que o celular dela era mais moderno do que o meu. Ela riu de novo, eu também. Para onde havia ido meu mau humor?

Liguei para o número. O salão havia mudado de endereço, não muito longe dali, e me ofereci para caminhar com Dona Ermelinda até o local. Ela, toda preocupada com o fato de estar me atrapalhando, a todo tempo se desculpava por estar me dando trabalho - sem ter sequer ideia do enorme bem que estava me fazendo.

Conversamos um pouco no trajeto. Descobri que ela era natural de uma cidade longe daqui, mas muito próxima à cidade onde morei antes de me mudar pra cá, e não tão distante assim da minha terra natal. Veio morar com o filho, que veio de mala e cuia para cá em razão do trabalho. Ficou contente ao saber que eu também não era daqui, que nossas cidades de origem eram próximas e que aqui éramos praticamente vizinhas uma da outra.

Eu também estava contente, incrivelmente contente. Nem parecia a mesma pessoa de cinco, dez minutos atrás.

Ao chegarmos finalmente ao novo endereço do tal salão, Dona Ermelinda, sempre sorrindo, me disse:

- Menina, não acredito que você veio até aqui comigo!

- Que é isso, Dona Ermelinda! A gente tem que ter sempre um tempo para parar e fazer uma gentileza na vida, não é?

Oi?

Quem era aquela pessoa gentil, simpática e educada? Mau humor, onde?!?!

- Você é muito mais do que gentil, minha filha. Como é seu nome mesmo?

Dona Ermelinda achou lindo meu nome e prometeu não esquecê-lo. Deu-me um abraço tão sincero e espontâneo que me deixou até sem graça. Ou será que fui eu que a abracei primeiro?

Antes de se despedir, desdobrou-se em agradecimentos e deu-me o cartão do tal salão, não sem antes fazer excelentes recomendações da profissional com quem havia marcado hora.

- Obrigada por tudo, minha querida. Deus lhe pague.

E lá se foi Dona Ermelinda, tão linda quanto a rima do seu nome. Cada cabelo branco parecia sorrir junto com ela; cada ruguinha era uma linha escrita pela vida a contar sua história.

Quantas histórias de vida Dona Ermelinda teria para contar?

Muitas, provavelmente. Mas, infelizmente, talvez eu nunca as ouça. Aliás, é bem possível que eu jamais cruze com Dona Ermelinda pela rua outra vez. Coisas de cidade grande, de gente grande, do mundo mundo vasto mundo.

“Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.”
(Poema de Sete Faces, Carlos Drummond de Andrade)

Dona Ermelinda poderia muito bem ser minha avó, falecida há mais de vinte anos. Poderia ser minha mãe, daqui a outras duas décadas. Poderia até mesmo ser eu mesma, depois de mais meio século.

Será que foi por isso que a ajudei?

Ou será que foi porque eu tinha que ter encontrado com ela e a ajudado, para que ela pudesse me ajudar também?

Após deixar a sempre simpática senhora no endereço desejado, fui almoçar. Engraçado, mas a fome já não me incomodava tanto. Do mau humor, então, nem sinal. Até o céu parecia menos cinzento. No peito, um coração mais leve batia feliz, irradiando luz feito um pequeno sol dentro de mim.

Estava tão tocada por tudo que senti os olhos se encherem d’água e o rosto sorrir involuntariamente, enquanto a alma parecia dançar ao som de uma música invisível. E eis que, subitamente, me recordei de uma frase que tanto gosto de dizer (mas que, há muito tempo, não dizia): a vida não cansa de nos surpreender.

Deus lhe pague, minha filha, Deus lhe pague.


Acredite, Dona Ermelinda: já está pago.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Julgando sem querer julgar

Há muito tempo sem escrever, mas não por falta de ideias. Há muito tempo sem escrever justamente por falta dele, o tempo.

***

Frequentemente, ouvimos alguém iniciar um discurso com "Não é que eu seja preconceituoso, mas..." ou "Eu sei que não devemos julgar os outros, só que...". Sempre um mas, sempre um porém. Não quer julgar, mas sempre acaba julgando. Não é preconceituoso, porém mal disfarça o preconceito que tem. 

Pior: muitas vezes, o julgamento, o preconceito, nem precisa se revelar em palavras. Está tão expresso naquilo que está implícito, está tão evidente naquilo que não foi dito, que sequer precisa dizer coisa alguma, afinal.

Hoje não falarei de preferência sexual, religião, cor de pele ou gênero. Hoje falarei simplesmente do poder de escolha que compete a cada um de nós sobre o que fazer da nossa própria vida. Da inexistência de fórmulas prontas, infalíveis e universais de felicidade e sucesso. E do quanto o Outro gosta de palpitar em terreno que não lhe pertence.

Filhos, ter ou não ter?

Todo casal e, mais especificamente, toda mulher, passou ou passará em algum momento por esse tipo de questionamento. Ele pode ser autoimposto, surgir em forma de cobrança (descarada ou não) do parceiro, da família e dos amigos ou mesmo vir à tona por mera curiosidade indisfarçada de alguém com quem, não raro, se trava um primeiro e superficial diálogo.

A questão se coloca ainda com mais assertividade para a mulher que já coleciona um certo número de décadas vividas. E a Mulher de Trinta Anos, decantada em prosa por Honoré de Balzac, talvez seja o alvo preferido desse tipo de indagação.

Como mulher prestes a completar minhas trinta queridas primaveras e envolvida em um relacionamento amoroso que já dura quase cinco anos, vejo-me respondendo à singela pergunta "você tem filhos?" numa frequência  cada vez mais espantosa. Seria mera tentativa de quebrar o gelo, puxar assunto, produzir small talk?

Não, não tenho, respondo simplesmente. A isso, quase sempre, se segue um silêncio constrangido e constrangedor, como se essa não fosse a resposta correta ou esperada, ou como se o "não ter" demandasse algum tipo de explicação. E esse silêncio é loquaz e mordaz; nas entrelinhas, diz sem nada dizer: "você já tem quase trinta anos, seu tempo está passando, POR QUE você ainda não teve filhos? Você tem algum problema reprodutivo? Você não gosta de crianças? Você está ao menos cogitando ter filhos um dia?"

Sinto-me salva pelo gongo apenas quando completo minha fala com algo do tipo "não, ainda não tive filhos" ou "ainda não tenho, mas quero ter" ou, melhor ainda, "adoro/amo/sou louca por crianças". Nesse momento, a tensão instantaneamente se dissipa, e consigo quase ler uma expressão de alívio no rosto do meu interlocutor. Tenho quase certeza que, no seu íntimo, ele suspira e pensa: "ufa, ainda bem, ela é NORMAL."

Já quando a pessoa tem (ou supõe ter) um grau maior de intimidade, o suspiro mental de alívio vem seguido de palavras do tipo: "mas você já tem trinta anos, é melhor começar a pensar nisso", ou "ah, mas filho é tudo de bom", ou "é, acho que até os trinta e cinco ainda dá pra esperar, depois é complicado", ou ainda "criança dá muito trabalho, é verdade, mas vale tanto a pena..."

E isso não acontece só uma ou duas vezes, mas várias. Às vezes, mais de uma vez no mesmo dia. Entre as pessoas de seu convívio, então, comentários dessa ordem podem se tornar aborrecidamente recorrentes, quase como se estivessem tentando vender a você uma ideia, um ideal, uma fórmula pronta, infalível e universal de felicidade e sucesso.

Esses dias, vivenciei um exemplo bizarro de o quão fácil você pode se tornar alvo do julgamento alheio, simplesmente por não ter filhos. Um colega de trabalho, com idade estimada entre cinquenta e sessenta anos, veio comentar comigo uma triste notícia aqui da cidade: um estudante universitário faleceu após uma crise convulsiva em pleno campus, possivelmente por falta de socorro médico tempestivo e adequado. Por uma lamentável coincidência, esse meu colega conhecia os pais do rapaz. Após externar meus sentimentos de pesar de praxe, teci a seguinte observação:

"Nossa, imagino a tristeza dos pais dele...eu penso que enterrar um filho deve ser uma das maiores dores da vida."

Ele, mais do que prontamente: "Você tem filhos?"

Eu: "Não."

Ele: "Ah."

SILÊNCIO.

Eu: "Mas eu me coloco no lugar dos meus pais, né? Imagino o quanto eles ficariam arrasados se algo assim acontecesse comigo."

Oi?

O que aconteceu aqui?

Por que ele respondeu com esse "ah", esse mísero "ah", numa entonação de quem insinuava que eu não teria conhecimento de causa para dizer o que eu estava dizendo? Será que ele nunca ouviu falar em empatia?

Empatia. Aptidão para se identificar com o outro, sentindo o que ele sente, desejando o que ele deseja, aprendendo da maneira como ele aprende etc. Ação de identificação de um sujeito com outro; quando alguém, através de suas próprias especulações ou sensações, se coloca no lugar de outra pessoa e tenta entendê-la (fonte, na falta e na preguiça de outra melhor: http://www.dicio.com.br/empatia/).

Achei bi-zar-ro.

Que eu sou louca por crianças, ninguém duvida. Não tenho filhos nem sobrinhos, mas tenho primas em segundo grau que são umas gracinhas. Moramos longe, mas sempre que as encontro, é uma delícia. Adoro o quanto são queridas e carinhosas comigo, adoro ganhar abraços e beijos babados, adoro ver o filme das Princesas da Disney pela enésima vez, adoro brincar de casinha e esconde-esconde com elas.

Adoro também ver, curtir e comentar todas as fotos de bebês e crianças que meus amigos, colegas e ex-colegas publicam nas redes sociais. Adoro ver uma criança bonitinha na TV, na rua, no restaurante, no supermercado. Adoro vídeos de bebezinhos fofos fazendo coisas fofas no Youtube, e adoro com uma intensidade que me faz quase chorar de tanto amor. Às vezes, sinto que amo um pouco todas as crianças que existem no mundo.

Então por que, Alice, sua balzaquiana doida, comprometida e adoradora de crianças, por que cargas d'água você AINDA NÃO TEVE FILHOS???

Porque essa é uma decisão que só cabe a mim e a meu companheiro.

Porque estamos numa fase do relacionamento que está muito boa, obrigada, e pretendemos continuar curtindo a dois por mais um bom tempo.

Porque não me vejo como mãe agora.

Porque meu companheiro também não quer filhos agora.

Porque gosto da minha independência, de poder dispor de meu tempo livre como eu bem entender. De não ter ninguém dependendo inteiramente de mim para se alimentar, se vestir, se locomover, realizar a própria higiene, conciliar o sono.

Porque gosto de me deitar e me levantar no horário que eu preferir, e gosto de dormir sem interrupções na madrugada.

Porque gosto de poder gastar meu dinheiro no que eu bem quiser, e de escolher poupar para objetivos exclusivamente meus e de meu companheiro.

Porque não sofro nenhum tipo de pressão de meus pais para que eu lhes dê netos, e sou imensamente grata por isso.

Porque moro longe dos referidos pais e da sogra, e percebo pela experiência alheia o quanto é difícil criar filhos sem um suporte direto da família.

Porque sequer fiz trinta anos, e, quando nasci, minha mãe já tinha trinta e dois. E eu nasci prematura de seis meses e meio. E eu era a primeira filha dela. E, mesmo considerando tudo isso, e mais as limitações da medicina de trinta anos atrás comparadas a hoje, deu tudo certo - tão certo que estou aqui nesta data, escrevendo este texto.

Porque, ao contrário do que parecem me sugerir, não sinto que meu relógio biológico está se transformando em uma bomba-relógio prestes a explodir.

Porque todo mundo adora palpitar e cobrar que você tenha filhos, mas ninguém estará lá para ajudá-lo a cuidar deles quando nascerem.

Porque existem várias formas de se ter uma vida feliz, e ter filhos não é condição necessária e suficiente para isso.

Porque, por enquanto, não sinto pressa alguma em tomar uma decisão que mudará para sempre minha vida.

Porque a vida é MINHA, e eu faço dela o que eu bem quiser!

E tenho dito!