quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Julgando sem querer julgar

Há muito tempo sem escrever, mas não por falta de ideias. Há muito tempo sem escrever justamente por falta dele, o tempo.

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Frequentemente, ouvimos alguém iniciar um discurso com "Não é que eu seja preconceituoso, mas..." ou "Eu sei que não devemos julgar os outros, só que...". Sempre um mas, sempre um porém. Não quer julgar, mas sempre acaba julgando. Não é preconceituoso, porém mal disfarça o preconceito que tem. 

Pior: muitas vezes, o julgamento, o preconceito, nem precisa se revelar em palavras. Está tão expresso naquilo que está implícito, está tão evidente naquilo que não foi dito, que sequer precisa dizer coisa alguma, afinal.

Hoje não falarei de preferência sexual, religião, cor de pele ou gênero. Hoje falarei simplesmente do poder de escolha que compete a cada um de nós sobre o que fazer da nossa própria vida. Da inexistência de fórmulas prontas, infalíveis e universais de felicidade e sucesso. E do quanto o Outro gosta de palpitar em terreno que não lhe pertence.

Filhos, ter ou não ter?

Todo casal e, mais especificamente, toda mulher, passou ou passará em algum momento por esse tipo de questionamento. Ele pode ser autoimposto, surgir em forma de cobrança (descarada ou não) do parceiro, da família e dos amigos ou mesmo vir à tona por mera curiosidade indisfarçada de alguém com quem, não raro, se trava um primeiro e superficial diálogo.

A questão se coloca ainda com mais assertividade para a mulher que já coleciona um certo número de décadas vividas. E a Mulher de Trinta Anos, decantada em prosa por Honoré de Balzac, talvez seja o alvo preferido desse tipo de indagação.

Como mulher prestes a completar minhas trinta queridas primaveras e envolvida em um relacionamento amoroso que já dura quase cinco anos, vejo-me respondendo à singela pergunta "você tem filhos?" numa frequência  cada vez mais espantosa. Seria mera tentativa de quebrar o gelo, puxar assunto, produzir small talk?

Não, não tenho, respondo simplesmente. A isso, quase sempre, se segue um silêncio constrangido e constrangedor, como se essa não fosse a resposta correta ou esperada, ou como se o "não ter" demandasse algum tipo de explicação. E esse silêncio é loquaz e mordaz; nas entrelinhas, diz sem nada dizer: "você já tem quase trinta anos, seu tempo está passando, POR QUE você ainda não teve filhos? Você tem algum problema reprodutivo? Você não gosta de crianças? Você está ao menos cogitando ter filhos um dia?"

Sinto-me salva pelo gongo apenas quando completo minha fala com algo do tipo "não, ainda não tive filhos" ou "ainda não tenho, mas quero ter" ou, melhor ainda, "adoro/amo/sou louca por crianças". Nesse momento, a tensão instantaneamente se dissipa, e consigo quase ler uma expressão de alívio no rosto do meu interlocutor. Tenho quase certeza que, no seu íntimo, ele suspira e pensa: "ufa, ainda bem, ela é NORMAL."

Já quando a pessoa tem (ou supõe ter) um grau maior de intimidade, o suspiro mental de alívio vem seguido de palavras do tipo: "mas você já tem trinta anos, é melhor começar a pensar nisso", ou "ah, mas filho é tudo de bom", ou "é, acho que até os trinta e cinco ainda dá pra esperar, depois é complicado", ou ainda "criança dá muito trabalho, é verdade, mas vale tanto a pena..."

E isso não acontece só uma ou duas vezes, mas várias. Às vezes, mais de uma vez no mesmo dia. Entre as pessoas de seu convívio, então, comentários dessa ordem podem se tornar aborrecidamente recorrentes, quase como se estivessem tentando vender a você uma ideia, um ideal, uma fórmula pronta, infalível e universal de felicidade e sucesso.

Esses dias, vivenciei um exemplo bizarro de o quão fácil você pode se tornar alvo do julgamento alheio, simplesmente por não ter filhos. Um colega de trabalho, com idade estimada entre cinquenta e sessenta anos, veio comentar comigo uma triste notícia aqui da cidade: um estudante universitário faleceu após uma crise convulsiva em pleno campus, possivelmente por falta de socorro médico tempestivo e adequado. Por uma lamentável coincidência, esse meu colega conhecia os pais do rapaz. Após externar meus sentimentos de pesar de praxe, teci a seguinte observação:

"Nossa, imagino a tristeza dos pais dele...eu penso que enterrar um filho deve ser uma das maiores dores da vida."

Ele, mais do que prontamente: "Você tem filhos?"

Eu: "Não."

Ele: "Ah."

SILÊNCIO.

Eu: "Mas eu me coloco no lugar dos meus pais, né? Imagino o quanto eles ficariam arrasados se algo assim acontecesse comigo."

Oi?

O que aconteceu aqui?

Por que ele respondeu com esse "ah", esse mísero "ah", numa entonação de quem insinuava que eu não teria conhecimento de causa para dizer o que eu estava dizendo? Será que ele nunca ouviu falar em empatia?

Empatia. Aptidão para se identificar com o outro, sentindo o que ele sente, desejando o que ele deseja, aprendendo da maneira como ele aprende etc. Ação de identificação de um sujeito com outro; quando alguém, através de suas próprias especulações ou sensações, se coloca no lugar de outra pessoa e tenta entendê-la (fonte, na falta e na preguiça de outra melhor: http://www.dicio.com.br/empatia/).

Achei bi-zar-ro.

Que eu sou louca por crianças, ninguém duvida. Não tenho filhos nem sobrinhos, mas tenho primas em segundo grau que são umas gracinhas. Moramos longe, mas sempre que as encontro, é uma delícia. Adoro o quanto são queridas e carinhosas comigo, adoro ganhar abraços e beijos babados, adoro ver o filme das Princesas da Disney pela enésima vez, adoro brincar de casinha e esconde-esconde com elas.

Adoro também ver, curtir e comentar todas as fotos de bebês e crianças que meus amigos, colegas e ex-colegas publicam nas redes sociais. Adoro ver uma criança bonitinha na TV, na rua, no restaurante, no supermercado. Adoro vídeos de bebezinhos fofos fazendo coisas fofas no Youtube, e adoro com uma intensidade que me faz quase chorar de tanto amor. Às vezes, sinto que amo um pouco todas as crianças que existem no mundo.

Então por que, Alice, sua balzaquiana doida, comprometida e adoradora de crianças, por que cargas d'água você AINDA NÃO TEVE FILHOS???

Porque essa é uma decisão que só cabe a mim e a meu companheiro.

Porque estamos numa fase do relacionamento que está muito boa, obrigada, e pretendemos continuar curtindo a dois por mais um bom tempo.

Porque não me vejo como mãe agora.

Porque meu companheiro também não quer filhos agora.

Porque gosto da minha independência, de poder dispor de meu tempo livre como eu bem entender. De não ter ninguém dependendo inteiramente de mim para se alimentar, se vestir, se locomover, realizar a própria higiene, conciliar o sono.

Porque gosto de me deitar e me levantar no horário que eu preferir, e gosto de dormir sem interrupções na madrugada.

Porque gosto de poder gastar meu dinheiro no que eu bem quiser, e de escolher poupar para objetivos exclusivamente meus e de meu companheiro.

Porque não sofro nenhum tipo de pressão de meus pais para que eu lhes dê netos, e sou imensamente grata por isso.

Porque moro longe dos referidos pais e da sogra, e percebo pela experiência alheia o quanto é difícil criar filhos sem um suporte direto da família.

Porque sequer fiz trinta anos, e, quando nasci, minha mãe já tinha trinta e dois. E eu nasci prematura de seis meses e meio. E eu era a primeira filha dela. E, mesmo considerando tudo isso, e mais as limitações da medicina de trinta anos atrás comparadas a hoje, deu tudo certo - tão certo que estou aqui nesta data, escrevendo este texto.

Porque, ao contrário do que parecem me sugerir, não sinto que meu relógio biológico está se transformando em uma bomba-relógio prestes a explodir.

Porque todo mundo adora palpitar e cobrar que você tenha filhos, mas ninguém estará lá para ajudá-lo a cuidar deles quando nascerem.

Porque existem várias formas de se ter uma vida feliz, e ter filhos não é condição necessária e suficiente para isso.

Porque, por enquanto, não sinto pressa alguma em tomar uma decisão que mudará para sempre minha vida.

Porque a vida é MINHA, e eu faço dela o que eu bem quiser!

E tenho dito!




2 comentários:

  1. Alice, gostei de ver que você voltou a escrever. Gosto do seu estilo e fluidez, mas cada um sabe a hora de escrever. Vim aqui para te dizer que me solidarizo contigo. Tenho os meus filhos mas não acho que qualquer um tenha a obrigação de ter filhos. Eu penso que se você é uma pessoa legal e ajuda, de alguma forma, o mundo a sua volta a ser melhor ela já contribui muito. Colocar filhos no mundo é muito fácil. É bem mais difícil ser uma pessoa digna e dar o exemplo para as novas gerações, sendo ou não nossos filhos. Há poucos meses terminei um segundo relacionamento e uma das causas fundamentais foi a questão de ter ou não ter filhos. Por isso não te sinta uma pessoa estranha por não ter filhos, ainda ou nunca. Não é isso que define uma pessoa. Abraço.

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    1. DeMorais, agradeço pela visita e pelo comentário tão bacana :)
      Concordo com você que colocar filhos no mundo é muito fácil; aliás, sou da opinião (um tanto polêmica, reconheço) de que a decisão de ter filhos é quase sempre fruto de uma vontade egoísta. Embora criar um filho seja um projeto que exige um nível quase transcendental de altruísmo, não raro ouço pessoas dizendo que decidiram ter filhos por razões que, no fundo, são puramente egoístas: "para alegrar a casa", "porque eu queria uma menina", "porque meus pais estão pressionando por um netinho", "porque meu sonho sempre foi ficar grávida (!)", "porque sempre quis ter um filho chamado Bruno (!!!!)", ou sei lá o que mais.
      Também acho que não é isso que define uma pessoa, ou uma mulher, ou mesmo a vida adulta. O importante é encontrar a sua fórmula particular e intransferível de felicidade e sucesso :)
      Prometo tentar escrever mais!
      Um abraço!

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