É uma noite de quinta-feira, mas poderia ter sido
uma sexta, sábado, quarta ou mesmo segunda.
Ela está cansada, muito cansada, após uma semana
quase toda de noites mal dormidas. O dia de trabalho foi puxado, a aula do
curso de idiomas pareceu que jamais teria fim, e o dia seguinte será igualmente
cheio.
Porém, ela está feliz. Sentada à sua frente, numa
mesa qualquer de um bar qualquer, está aquela amiga que conhece desde os três
anos de idade, a amiga que a vida levou por outros caminhos aos dezessete e
trouxe de volta dez anos depois, numa certa manhã em um certo aeroporto com voos
atrasados. A amiga que agora está longe, mas que, vez ou outra, vem para a sua
nova cidade em razão de algum compromisso profissional e faz da vinda um belo
pretexto para se reencontrarem.
O papo rola solto, as risadas também. Já passa de
meia-noite e as amigas não querem saber de ir embora (e nem de consumir mais
nada, para o visível desespero dos garçons). Quase três décadas de memórias e
histórias se desenrolam alegremente, enchendo ainda mais de cor e luz o já
colorido salão.
Lá pelas tantas, ela se lembra de uma paixão
adolescente não correspondida, um amor malsucedido que fez seu coração juvenil
sofrer como se o mundo fosse acabar à época. A amiga não se recorda de quem
era. Ela, rindo, descreve fisicamente o outrora amado, e aproveita para dizer
que, graças à rede social da moda, descobriu que está muito melhor sem ele. Os
anos se passaram, mas o rapaz de trinta continua a se comportar como se ainda
tivesse quinze. E o pior: está casado com a namorada de então, que hoje está
feia e gorducha. Tudo isso, claro, devidamente documentado em dezenas de fotos
postadas pelo cidadão.
A amiga ri e pede para ver as fotos. Ela, já
xingando de antemão a conexão proporcionada por sua operadora telefônica, saca
da bolsa o celular e põe-se a vasculhar a tal rede social atrás das
famigeradas fotos. O sinal está fraco, fraco....falha no carregamento da
página.
Ela tenta de novo, rindo e esbravejando. Outra falha, mais um palavrão,
nova tentativa. Uma foto finalmente aparece, mas está muito pequena; a amiga
não consegue ver direito. Ela tenta aumentar o tamanho da exibição, mas a
imagem congela. Ela pressiona a tela repetidamente com o dedo, mais uma vez,
mais uma vez....
Um arrepio gélido toma conta de seu corpo. Parece
que um iceberg está se revirando no seu estômago. Puta que pariu, O QUE FOI
QUE VOCÊ FEZ???
Ela não consegue ter certeza, mas tem a nítida
impressão de que acaba de "curtir" a foto ao tentar aumentá-la.
Puta que pariu, puta que pariu, isso não pode estar acontecendo! Isso não poderia
ter acontecido! Puta que pariu e todos os outros palavrões do mundo, e
agora???
A foto foi postada há pelo menos dois anos. Datam
da época apenas duas "curtidas": uma da mãe do rapaz e outra da
esposa-hobbit marcada na foto. Dois
anos atrás, duas "curtidas". E AGORA VOCÊ APARECE DO NADA E CURTE SEM
QUERER, SUA MONGA DESASTRADA???
Como explicar, como justificar? Não tem como. Na
foto, apenas o casal abraçado, sorrindo feliz em meio a uma viagem. Que razões
alguém que não estivesse na foto teria para curti-la?
Nenhuma. Ainda mais dois anos depois. Ainda mais
que a autora da curtida foi notória e perdidamente apaixonada pelo moçoilo na
adolescência e, sem medo nem pudor, escancarou seu amor em uma carta que jamais
deveria ter sido escrita ou enviada (e muito menos lida).
Não tem como explicar nem justificar a "curtida" aleatória, a não ser por meio da verdade nua e crua: ela estava bisbilhotando as fotos
dele, ela ainda se lembra dele, ela se incomoda (um pouco que seja) por ter sido rejeitada e por saber que hoje ele está
casado com outra. Resumindo, ela estava fazendo o que não devia. Igualzinho ao famoso
batom na cueca.
Pior ainda: como remediar o deslize? Impossível.
Ainda que ela desfaça a operação, a cagada já está feita. Ele
provavelmente já viu a curtida, dada a velocidade das omnipresentes
notificações virtuais de hoje. A esposa possivelmente já está ciente também. A
essa altura, curtir e depois "descurtir" só vai dar ainda mais
bandeira.
Nesse meio tempo, a amiga continua tagarelando
alegremente, sem sequer imaginar o turbilhão de emoções que assola aquela pobre
alma (o que a amiga não tem de estatura, lhe sobra em disposição para
conversar). Ela sua frio. O que fazer, o que fazer?
Nada.
Não há nada a ser
feito, a não ser fingir que isso nunca aconteceu. Infelizmente.
Ela pousa o celular na mesa e arrisca um sorriso
sem graça, não sem antes maldizer mais uma vez a operadora. A amiga parece
sentir-se encorajada e desata a falar novamente. Ela suspira em silêncio,
amaldiçoando mentalmente a curiosidade humana, os amores mal resolvidos,
as redes sociais, o namorado que insistiu para que ela adquirisse um celular
com acesso à internet, sua ignorância tecnológica, os hobbits, todas as pessoas do mundo, o universo conhecido, tudo.
Finalmente vencidas pelas insistentes indiretas do
garçom, as amigas decidem pedir a conta e ir embora. No caminho de volta até a
porta do hotel, as despedidas, os elogios mútuos, os muitos beijos e
abraços ajudam a reanimar um pouco sua alma. Seja como for, aquele foi um
encontro feliz!
Já em casa, ela tira a maquiagem e os sapatos,
veste o pijama e deita a cabeça no travesseiro. Subitamente, percebe que não
vai conseguir dormir com aquela dúvida. Afinal de contas, curtiu ou não curtiu?
Curtiu ou não curtiu??
O mais sorrateiramente possível, ela se esgueira para
fora da cama e mergulha a mão na bolsa atrás do celular. Nova lentidão, novo
erro de conexão, nova espera e angústia sem fim...
Alarme falso. A foto permanece com as mesmas duas “curtidas”
originais.
Exausta, ela se deixa cair na cama e dorme o sono
dos justos até a manhã seguinte.
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