quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Deus lhe pague

Sabe aqueles dias em que tudo parece dar errado? Aqueles benditos dias em que dá vontade de voltar no tempo e começar tudo de novo, pra ver se as coisas saem mais certo? Ah, se pudéssemos reiniciar nossos dias, tal qual fazemos com nossos computadores! Seria um recurso tão útil...

Era um desses dias. Eu parecia ter levantado com o pé esquerdo, ou melhor, com uns dez pés esquerdos. Estava com uma vontade medonha de sair correndo do trabalho e voltar para casa, me enfiar na cama e não sair dali até maio do ano que vem, pelo menos.

Para piorar, era um dia cinzento, com uma garoazinha chata daquelas de arrepiar o cabelo e um vento besta que insistia em me descabelar mais ainda. Meu humor, definitivamente, estava tão cinzento quanto o céu daquele dia.

E não, eu não podia sair correndo pra casa. Já havia chegado beeem atrasada no trabalho e levado aquela significativa olhada de soslaio do chefe. E, sinceramente, me enterrar debaixo das cobertas até maio do ano que vem parecia admitir a derrota. Não tinha como, não mesmo, infelizmente.

Deu o horário do almoço e eu saí novamente à rua, esbravejando mentalmente contra o cinza do céu, a garoa besta, o vento chato, o animal motorizado que fez uma barbeiragem absurda bem na minha frente (eu estava a pé, mas motoristas navalhas conseguem me irritar profundamente mesmo quando não estou ao volante, acredite!), a vida, o mundo, o universo, enfim, tudo. Tudo.

 Mau humor era apelido para o meu humor.

De repente (não mais que de repente), a vozinha da consciência, meu personal Grilo Falante do Pinóquio, se fez ouvir na minha cabeça contrariada: “Ah, vá, todo mundo tem dias assim, até parece que você é a única no mundo! E, com certeza, outros dias como esse virão, bem desse mesmo jeito! Relaxe, não aconteceu nada de tão grave assim, nada que não tenha solução! E, afinal de contas, você vai passar o dia emburrada feito uma criança mimada ou vai encarar os problemas como um adulto deve fazer – senão com alegria, ao menos com serenidade?”

Bendito Grilo Falante! Bastou ouvir essas palavras, ditas de mim para mim mesma, que já relaxei os ombros, desfiz a cara feia, respirei fundo e pensei: “É mesmo...melhor encarar as coisas com serenidade e parar de ficar remoendo tudo o que deu errado! Quem sabe o meu dia não melhora agora à tarde?”
Mal havia concluído esse pensamento quando uma coisa extraordinária aconteceu.

(Em verdade, a coisa, em si, não teve nada de extraordinário. Extraordinário foi o que eu fiz dela e como isso mudou meu humor e meu dia totalmente).

Caminhando em minha direção, vinha uma senhora de seus setenta, quiçá oitenta anos, carregando um cartão de visitas na mão e com um sorriso desconcertado. Numa voz muito suave, ela me disse:

- Meu bem, por favor, eu gostaria de uma ajuda sua aqui. Eu estou procurando esse endereço, mas estou tão perdida! Cheguei segunda-feira aqui na cidade e ainda não consegui me localizar direito...essa cidade é muito estranha, eu não consigo me achar aqui!

Reconheci-a imediatamente. Eu havia passado por ela no meu trajeto super-mega-atrasado para o trabalho, mais cedo naquele dia. Deus do céu! Essa senhora estava perambulando pela rua atrás do tal endereço desde aquela hora? Coitadinha!

Examinei o cartão que ela me entregava. Era um salão de beleza que, ao que tudo indicava, ficava na quadra seguinte. Disse isso a ela, mas ela balançou a cabeça negativamente, afirmando que já havia passado por ali e não poderia ser naquele endereço.

-  Eu me lembro de que era um prédio alto, branco, e que, ao descer por aquela rua, eu chegava na Avenida X, que leva para a minha casa.

Carácoles! Prédio alto e branco, avenida que leva para casa? Não fazia a mínima ideia de onde o tal lugar poderia ser, mas não tinha coragem de indicar uma direção aleatória para aquela senhorinha tão amável e deixá-la vagando pela rua por sei lá mais quanto tempo, por mais que minha barriga estivesse roncando quase audivelmente de fome.

- Eu tive uma ideia...como é o nome da senhora?

- Ermelinda, meu bem.

- Então, Dona Ermelinda, eu tive uma ideia. Vamos ligar para esse número aqui do cartão? -  e remexi na minha bolsa atrás do celular.

- Não, pode deixar, usa meu celular aqui, bem! Só vou te pedir para ligar porque eu ainda não aprendi a mexer nesse negócio aí !

Ela riu, eu ri também. Eu arrisquei uma brincadeira, dizendo que o celular dela era mais moderno do que o meu. Ela riu de novo, eu também. Para onde havia ido meu mau humor?

Liguei para o número. O salão havia mudado de endereço, não muito longe dali, e me ofereci para caminhar com Dona Ermelinda até o local. Ela, toda preocupada com o fato de estar me atrapalhando, a todo tempo se desculpava por estar me dando trabalho - sem ter sequer ideia do enorme bem que estava me fazendo.

Conversamos um pouco no trajeto. Descobri que ela era natural de uma cidade longe daqui, mas muito próxima à cidade onde morei antes de me mudar pra cá, e não tão distante assim da minha terra natal. Veio morar com o filho, que veio de mala e cuia para cá em razão do trabalho. Ficou contente ao saber que eu também não era daqui, que nossas cidades de origem eram próximas e que aqui éramos praticamente vizinhas uma da outra.

Eu também estava contente, incrivelmente contente. Nem parecia a mesma pessoa de cinco, dez minutos atrás.

Ao chegarmos finalmente ao novo endereço do tal salão, Dona Ermelinda, sempre sorrindo, me disse:

- Menina, não acredito que você veio até aqui comigo!

- Que é isso, Dona Ermelinda! A gente tem que ter sempre um tempo para parar e fazer uma gentileza na vida, não é?

Oi?

Quem era aquela pessoa gentil, simpática e educada? Mau humor, onde?!?!

- Você é muito mais do que gentil, minha filha. Como é seu nome mesmo?

Dona Ermelinda achou lindo meu nome e prometeu não esquecê-lo. Deu-me um abraço tão sincero e espontâneo que me deixou até sem graça. Ou será que fui eu que a abracei primeiro?

Antes de se despedir, desdobrou-se em agradecimentos e deu-me o cartão do tal salão, não sem antes fazer excelentes recomendações da profissional com quem havia marcado hora.

- Obrigada por tudo, minha querida. Deus lhe pague.

E lá se foi Dona Ermelinda, tão linda quanto a rima do seu nome. Cada cabelo branco parecia sorrir junto com ela; cada ruguinha era uma linha escrita pela vida a contar sua história.

Quantas histórias de vida Dona Ermelinda teria para contar?

Muitas, provavelmente. Mas, infelizmente, talvez eu nunca as ouça. Aliás, é bem possível que eu jamais cruze com Dona Ermelinda pela rua outra vez. Coisas de cidade grande, de gente grande, do mundo mundo vasto mundo.

“Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.”
(Poema de Sete Faces, Carlos Drummond de Andrade)

Dona Ermelinda poderia muito bem ser minha avó, falecida há mais de vinte anos. Poderia ser minha mãe, daqui a outras duas décadas. Poderia até mesmo ser eu mesma, depois de mais meio século.

Será que foi por isso que a ajudei?

Ou será que foi porque eu tinha que ter encontrado com ela e a ajudado, para que ela pudesse me ajudar também?

Após deixar a sempre simpática senhora no endereço desejado, fui almoçar. Engraçado, mas a fome já não me incomodava tanto. Do mau humor, então, nem sinal. Até o céu parecia menos cinzento. No peito, um coração mais leve batia feliz, irradiando luz feito um pequeno sol dentro de mim.

Estava tão tocada por tudo que senti os olhos se encherem d’água e o rosto sorrir involuntariamente, enquanto a alma parecia dançar ao som de uma música invisível. E eis que, subitamente, me recordei de uma frase que tanto gosto de dizer (mas que, há muito tempo, não dizia): a vida não cansa de nos surpreender.

Deus lhe pague, minha filha, Deus lhe pague.


Acredite, Dona Ermelinda: já está pago.