Sabe aqueles dias em que tudo parece dar errado? Aqueles
benditos dias em que dá vontade de voltar no tempo e começar tudo de novo, pra
ver se as coisas saem mais certo? Ah, se pudéssemos reiniciar nossos dias, tal
qual fazemos com nossos computadores! Seria um recurso tão útil...
Era um desses dias. Eu parecia ter levantado com o pé
esquerdo, ou melhor, com uns dez pés esquerdos. Estava com uma vontade medonha
de sair correndo do trabalho e voltar para casa, me enfiar na cama e não sair
dali até maio do ano que vem, pelo menos.
Para piorar, era um dia cinzento, com uma garoazinha chata
daquelas de arrepiar o cabelo e um vento besta que insistia em me descabelar
mais ainda. Meu humor, definitivamente, estava tão cinzento quanto o céu
daquele dia.
E não, eu não podia sair correndo pra casa. Já havia chegado
beeem atrasada no trabalho e levado aquela significativa olhada de soslaio do
chefe. E, sinceramente, me enterrar debaixo das cobertas até maio do ano que
vem parecia admitir a derrota. Não tinha como, não mesmo, infelizmente.
Deu o horário do almoço e eu saí novamente à rua,
esbravejando mentalmente contra o cinza do céu, a garoa besta, o vento chato, o
animal motorizado que fez uma barbeiragem absurda bem na minha frente (eu
estava a pé, mas motoristas navalhas conseguem me irritar profundamente mesmo
quando não estou ao volante, acredite!), a vida, o mundo, o universo, enfim,
tudo. Tudo.
Mau humor era apelido
para o meu humor.
De repente (não mais
que de repente), a vozinha da consciência, meu personal Grilo Falante do Pinóquio, se fez ouvir na minha cabeça
contrariada: “Ah, vá, todo mundo tem dias assim, até parece que você é a única
no mundo! E, com certeza, outros dias como esse virão, bem desse mesmo jeito!
Relaxe, não aconteceu nada de tão grave assim, nada que não tenha solução! E,
afinal de contas, você vai passar o dia emburrada feito uma criança mimada ou
vai encarar os problemas como um adulto deve fazer – senão com alegria, ao
menos com serenidade?”
Bendito Grilo Falante! Bastou ouvir essas palavras, ditas de
mim para mim mesma, que já relaxei os ombros, desfiz a cara feia, respirei
fundo e pensei: “É mesmo...melhor encarar as coisas com serenidade e parar de
ficar remoendo tudo o que deu errado! Quem sabe o meu dia não melhora agora à
tarde?”
Mal havia concluído esse pensamento quando uma coisa
extraordinária aconteceu.
(Em verdade, a coisa, em si, não teve nada de
extraordinário. Extraordinário foi o que eu fiz dela e como isso mudou meu
humor e meu dia totalmente).
Caminhando em minha direção, vinha uma senhora de seus
setenta, quiçá oitenta anos, carregando um cartão de visitas na mão e com um
sorriso desconcertado. Numa voz muito suave, ela me disse:
- Meu bem, por favor, eu gostaria de uma ajuda sua aqui. Eu
estou procurando esse endereço, mas estou tão perdida! Cheguei segunda-feira
aqui na cidade e ainda não consegui me localizar direito...essa cidade é muito
estranha, eu não consigo me achar aqui!
Reconheci-a imediatamente. Eu havia passado por ela no meu
trajeto super-mega-atrasado para o trabalho, mais cedo naquele dia. Deus do
céu! Essa senhora estava perambulando pela rua atrás do tal endereço desde
aquela hora? Coitadinha!
Examinei o cartão que ela me entregava. Era um salão de
beleza que, ao que tudo indicava, ficava na quadra seguinte. Disse isso a ela,
mas ela balançou a cabeça negativamente, afirmando que já havia passado por ali
e não poderia ser naquele endereço.
- Eu me lembro de que
era um prédio alto, branco, e que, ao descer por aquela rua, eu chegava na
Avenida X, que leva para a minha casa.
Carácoles! Prédio alto e branco, avenida que leva
para casa? Não fazia a mínima ideia de onde o tal lugar poderia ser, mas não tinha
coragem de indicar uma direção aleatória para aquela senhorinha tão amável e
deixá-la vagando pela rua por sei lá mais quanto tempo, por mais que minha
barriga estivesse roncando quase audivelmente de fome.
- Eu tive uma ideia...como é o nome da senhora?
- Ermelinda, meu bem.
- Então, Dona Ermelinda, eu tive uma ideia. Vamos ligar para
esse número aqui do cartão? - e remexi
na minha bolsa atrás do celular.
- Não, pode deixar, usa meu celular aqui, bem! Só vou te
pedir para ligar porque eu ainda não aprendi a mexer nesse negócio aí !
Ela riu, eu ri também. Eu arrisquei uma brincadeira, dizendo
que o celular dela era mais moderno do que o meu. Ela riu de novo, eu também.
Para onde havia ido meu mau humor?
Liguei para o número. O salão havia mudado de endereço, não
muito longe dali, e me ofereci para caminhar com Dona Ermelinda até o local.
Ela, toda preocupada com o fato de estar me atrapalhando, a todo tempo se
desculpava por estar me dando trabalho - sem ter sequer ideia do enorme bem que
estava me fazendo.
Conversamos um pouco no trajeto. Descobri que ela era
natural de uma cidade longe daqui, mas muito próxima à cidade onde morei antes
de me mudar pra cá, e não tão distante assim da minha terra natal. Veio morar
com o filho, que veio de mala e cuia para cá em razão do trabalho. Ficou
contente ao saber que eu também não era daqui, que nossas cidades de origem
eram próximas e que aqui éramos praticamente vizinhas uma da outra.
Eu também estava contente, incrivelmente contente. Nem
parecia a mesma pessoa de cinco, dez minutos atrás.
Ao chegarmos finalmente ao novo endereço do tal salão, Dona
Ermelinda, sempre sorrindo, me disse:
- Menina, não acredito que você veio até aqui comigo!
- Que é isso, Dona Ermelinda! A gente tem que ter sempre um
tempo para parar e fazer uma gentileza na vida, não é?
Oi?
Quem era aquela pessoa gentil, simpática e educada? Mau
humor, onde?!?!
- Você é muito mais do que gentil, minha filha. Como é seu
nome mesmo?
Dona Ermelinda achou lindo meu nome e prometeu não
esquecê-lo. Deu-me um abraço tão sincero e espontâneo que me deixou até sem
graça. Ou será que fui eu que a abracei primeiro?
Antes de se despedir, desdobrou-se em agradecimentos e deu-me
o cartão do tal salão, não sem antes fazer excelentes recomendações da
profissional com quem havia marcado hora.
- Obrigada por tudo, minha querida. Deus lhe pague.
E lá se foi Dona Ermelinda, tão linda quanto a rima do seu
nome. Cada cabelo branco parecia sorrir junto com ela; cada ruguinha era uma linha
escrita pela vida a contar sua história.
Quantas histórias de vida Dona Ermelinda teria para contar?
Muitas, provavelmente. Mas, infelizmente, talvez eu nunca as
ouça. Aliás, é bem possível que eu jamais cruze com Dona Ermelinda pela rua
outra vez. Coisas de cidade grande, de gente grande, do mundo mundo vasto mundo.
“Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.”
(Poema de Sete Faces, Carlos
Drummond de Andrade)
Dona Ermelinda poderia muito bem
ser minha avó, falecida há mais de vinte anos. Poderia ser minha mãe, daqui a outras
duas décadas. Poderia até mesmo ser eu mesma, depois de mais meio século.
Será que foi por isso que a
ajudei?
Ou será que foi porque eu tinha que ter encontrado com ela e a
ajudado, para que ela pudesse me ajudar também?
Após deixar a sempre simpática senhora
no endereço desejado, fui almoçar. Engraçado, mas a fome já não me incomodava
tanto. Do mau humor, então, nem sinal. Até o céu parecia menos cinzento. No
peito, um coração mais leve batia feliz, irradiando luz feito um pequeno sol
dentro de mim.
Estava tão tocada por tudo que senti
os olhos se encherem d’água e o rosto sorrir involuntariamente, enquanto a alma
parecia dançar ao som de uma música invisível. E eis que, subitamente, me
recordei de uma frase que tanto gosto de dizer (mas que, há muito tempo, não
dizia): a vida não cansa de nos surpreender.
Deus lhe pague, minha filha, Deus
lhe pague.
Acredite, Dona Ermelinda: já está
pago.